terça-feira, 17 de junho de 2008

A lembrança de um sorriso indígena

Conheci há aproximadamente um ano e meio um menininho de nome Luiz Fernando.
De pele clara, cabelo pretinho, liso, escorrido, com traços indígenas, o que fez com que estabelecéssemos uma relação de brincar no imaginário de arco e flecha. Mas era engraçado porque mesmo que as flechas nos alcançassem, caíamos na risada, eram flechas que faziam cócegas.....
Ele trazia consigo muitas marcas físicas e na alma. As perninhas marcadas, ao saber da história entendi, menino guerreiro que para se defender, se proteger, escondia-se no quintal, atrás das moitas de mato, passava a noite ao lado de pernilongos, mas tinha alergia (indígena moderno...) e as picadas lhe renderam cicatrizes.
Essas cicatrizes eram nada, delas até demos belas risadas, eu, ele e as crianças que moravam na casa lar.
Doíam mesmo as feridas abertas de uma história marcada pela violência doméstica, quando pareciam que iam cicatrizar, abriam-se e ele gritava, esperneava quando encontrava uma situação qualquer que lhe desse a "permissão" de gritar, espernear.
Uma vez fui chamada às pressas, Luiz Fernando tinha quebrado móveis e estava avançando em cima de um educador por um motivo que já nem lembro mais. O educador, ainda na fase inicial da caminhada, fazia provocações com a intenção da criança por para fora o desconforto. Mas entendíamos que o amor e a paciência, instrumentos de apurada e difícil utilização, eram mais fortes. Cheguei e disse "não!" (o que "não" adiantou...), me aproximei e Luiz Fernando chutava em minha direção, mas sabia que, na realidade, os chutes não eram para mim. Passei a dizer calma, relembrar tantos momentos bonitos que ele havia nos dado até que ele se acalmou e seguimos.
Em especial, depois disso, Luiz Fernando e eu ficamos mais próximos e posso dizer da criança inteligente, risonha, esperta que conheci.
Só que tem etapas muitas tristes que é necessário dizer, não para que elas prevaleçam e a história de Luiz Fernando seja sinônimo apenas de dor, mas para que fique a reflexão sobre qual a infância queremos para nosso país, sobre se é necessário ou não cuidarmos, tentarmos nos colocar no lugar do outro para ter compaixão, pensar por diversos ângulos, agir para proteger.
Luiz Fernando nos foi apresentado* em virtude de uma segunda adoção mal sucedida, sendo que amava muito esses pais. Aos 10 anos, sem seus pais e sem entender direito. Como entender direito? Se em qualquer separação adulta, ficam dúvidas para o tempo, qual a expectativa que devemos ter sobre o entendimento de uma criança que sofre 3 separações ao longo de apenas 10 anos de vida? A primeira de sua família biológica e duas de famílias supostamente "adotivas".
A história da mãe é um comum, a mulher que entrega seu filho a um casal que dará vida boa a ele, ao contrário dela própria, sem expectativas, sozinha. O pai? Mais uma resposta comum: não sabemos, mas, provaelmente, o pai saiba da existência dele.
Sobre o segundo casal, não sei direito também, sei do terceiro, com quem Luiz Fernando ficou mais ou menos 5 anos. Fora adotado com a importante missão de salvar o casamento de seus pais. O pai queria um filho que a mãe não podia lhe dar, o casamento estava em crise. Assim a criança chega à família.
Como uma criança "salva" uma relação feita por adultos? É esse o sentimento que deve mover uma adoção?
Anos depois, mãe com câncer, pai omisso, Luiz Fernando é levado ao Fórum e deixado junto com o Serviço Social. As técnicas contaram que ao vê-los indo embora, a criança gritava: "Mãe, não me deixa aqui!"
Com a esperança do casal ter se arrependido, as técnicas foram à casa, o casal as atendeu, todas as roupas, brinquedos, fotos de Luiz Fernando já tinham sido destinados, não queriam lembrança alguma.
Durante muito tempo no Abrigo, Luiz Fernando sempre se referia à essa mãe:"a comida da minha mãe é boa...", "minha mãe sabe fazer isso, aquilo".
Aos poucos, com momentos de muita dor e angústia (mal conseguia dormir), foi se adaptando ao abrigo. Por vezes, saia, atravessava a represa e ia em busca desses pais, sem sucesso de encontrá-los, não sei o porquê, pois chegou a ir à casa do vizinho....
Garoto inteligente, sem dificuldades com o aprendizado, fazendo Curso de Cidadania oferecido pelo Corpo de Bombeiros, nesse último domingo, quis reencontrar novamente essa tal família. Recebi a notícia hoje, agora a pouco que saíra da casa lar e fora encontrado morto na represa, provavelmente vítima de enforcamento. O abrigo aguarda a conclusão do laudo do IML.
O Brasil se emocionou com a história de Isabella Nardoni, assim como eu, vítima também de asfixia e com a probabilidade de ser em consequência de violência doméstica. O caso, embora existam muitas Isabellas, ajuda a pensar, a desvelar que nem sempre todos os familiares representam acolhimento, segurança. Os casos dos Luízes Fernandos da vida também ajudam a refletir que nem toda adoção é nobre porque nem toda adoção vê a criança, ao contrário, em muitos casos existem interesses do mundo adulto em encontrar uma criança que se encaixe à idealização ou à necessidade.
Como pode concebermos ainda um mundo no qual toda espécie de força é utilizada contra? Apenas a favor de interesses individuais. Como um adulto pode utilizar a supremacia de sua força física e enforcar uma criança? Como um adulto pode brincar de ser pai e mãe e depois dizer "não brinco mais" e "devolver" uma criança tal como se fosse uma coisa?
Passam muitas idéias na minha cabeça, desde encarar que existem pessoas à beira de ou na psicopatia e qual tratamento devemos oferecer, como detectar antes que Isabellas e Luízes Fernandos venham a perder a vida?
Como amparar os adultos a pensar sobre o tratamento que oferecemos e podemos oferecer à infância e juventude? A mãe biológica de Luiz Fernando não pensou que isso iria acontecer com o fiho dela, ao contrário, achou-se hipossuficiente para lhe oferecer uma vida de dignidade. Será que se ela tivesse recebido apoio, a história poderia ser outra? Milhares de mulheres ficam sozinhas diante de situações adversas, tendo de criar filhos sozinhas, sem poder ficar doente, ter depressão, enfrentar desemprego. Mas não passar por isso é possível?
A última vez que vi Luiz Fernando, há cerca de dois meses, após nos flecharmos muito... Ele saiu do banho, enrolado na toalha e fiz: "fiuuuuuuu fiuuuuuuuu", ele riu, riu, correu para o seu quarto, a toalha queria cair e ele gargalhava. Depois pedia "fica aqui hoje, dorme no meu quarto?" Estava orgulhoso de ter um quarto só para ele.
Depois de arrumado, ficou um tempão no meu colo, eu brincando com ele, ríamos muito. Quando estava indo embora, ele me disse "Tchau, mãe!"
Tchau, filhote, vou mandar uma flechada no céu para alcançar você e fazê-lo ficar feliz.
Que Olodum tenha o acolhido.

Um comentário:

Um dia após outro dia... disse...

Querida Amiga, este texto reflexivo provocativo carregado de toda a sua sensibilidade e indignação nos faz refletir e agir ainda mais por um Brasil mais justo que permita que nossos Luizes, Fernandos, Isabelas e tantas outras lindas almas tenham, não apenas direitos, mas a oportunidade de viver com amor, repeito e dignidade.

Bjus,
Guiné Silva